segunda-feira, 2 de novembro de 2009

CORAGEM

Vi um menino, recém-chegado da Amazônia, sendo entrevistado no programa “Jovens Talentos”, do Raul Gil. Disse que passou seis meses viajando, de cidade em cidade, com a família, para morar em São Paulo. Seu sonho era apresentar-se naquele programa. Pretendia cantar junto com o irmão, mas este havia desaparecido misteriosamente em algum canto do auditório.

Corajoso, sozinho, o garoto começou a mostrar uma sertaneja. Canção nova, xarope, mas sentida, e à medida que cantava os olhos molhavam-se de lágrimas, as gotas vazaram, o rosto do menino transformou-se num rio de lágrimas, os olhos uma fonte límpida de ternura, tristeza e paixão. A voz encontrou entulhos na garganta, mas o menino não parou, continuou a derramar sua vida pelas faces, e na platéia os jurados lançavam mãos aos lenços, e naquela jovem tarde de sábado até as traças do velho paletó do Raul Gil desfizeram-se em lágrimas.

Que momento lindo vivemos naquela hora! Quantos discos de platina mereceram aqueles minutos tão verdadeiros! Quantos milhões de sensibilidades despertaram aqueles olhos, retrato de uma esperança renascida das cinzas da miséria!

Lembrando aquele ser brilhante, tenho fé de que, apesar de todas as algemas criadas pelo capital, pelo mercado ou qualquer dessas coisas demoníacas inventadas para manter 2% no céu, 80% no inferno e 18% no purgatório, dessas putarias que impedem de registrar nossos sentimentos, a verdade um dia vencerá, a arte novamente renascerá. E ela não terá logomarca nenhuma!

domingo, 1 de novembro de 2009

ADORNO


O amor pede um adorno,

mil fitas entrelaçadas
nas bordas da pele,
correntinhas e rendilhas dependuradas,
transbordando purpurina.
Enfeites de pétalas secas de girassóis,
colares de contas de vidro,
franjas pintadas nas mangas,
vermelhas nos punhos
envoltos em seda e veludo.
Talco nas faces, perfume de tangerina,
coroa e brincos iguais ao colar.
O amor se enfeita como noivo
ávido de beleza e esperança,
o que lhe é mais caro.
A dor do amor caminha no sangue,
trafega nos braços,
se aloja nos ossos.
Enquanto remédio ou veneno,
o amor está sempre
em sua máxima medida.

sábado, 31 de outubro de 2009

CAÇADA DE MORCEGOS

Chegava a noite, quando as sombras se sobrepunham às cores e já nada se via no terreiro da casa da Nona Guil. Eu e meu irmão Dimas amarrávamos pedras em longos fios de barbante e começávamos a girar em torno de nossos corpos. O silvo característico de barbante cortando os ares era o chamariz dos morcegos. Feria seus ouvidos, seu radar apurado, então ouvíamos seus trinados esvoaçantes em torno de nós, suas sombras apareciam rapidamente contra o céu estrelado, e sentíamos aqueles baques nos barbantes, os guinchos dos animais abatidos. Alguns se recuperavam e alçavam vôo, retornando humilhados às suas cavernas, porém muitos não resistiam, estavam feito manchas pretas sobre o solo marrom na manhã seguinte, quando acordávamos bem cedo para contá-los. Nosso tio Casemiro, caçador exímio quando garoto, enquanto enlaçava os cavalos nos ariames e se preparava para partir de carroça rumo ao milharal, olhava nosso entusiasmo e mentia que aqueles "morcegos do diacho" nunca mais chupariam o sangue de suas vacas. Somente anos depois ficamos sabendo que os pobres mamíferos voadores viviam da coleta de néctar das flores, feito abelhas, feito beija-flores.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

DILIGÊNCIAS MODERNAS

Se você é proprietário de uma frota desses ônibus intermunicipais superconfortáveis, eu o convido para uma viagem de duas ou três horas numa dessas maravilhas, para que você possa desfrutá-la pessoalmente.

Nesses dias frios você terá a oportunidade de entrar no veículo lotado, vindo da cidade vizinha, e sentirá com grande prazer aquele bafo quente dos passageiros. Está ali o verdadeiro significado do calor humano. As largas vidraças panorâmicas estão embaçadas com o hálito úmido dos companheiros de viagem, que se mistura ao aroma delicioso que vem lá da privada. Completando o coquetel aromático, um quê de naftalina, que procede de algum local inespecífico, e a bergamota, o almíscar e o sândalo vencidos misturados a várias nuances de suor antigo. Aquele ar gostoso fica circulando de narina em narina. Ao longo da viagem elas vão trocando vírus e outras substâncias ativas e benéficas à saúde, tornando a atmosfera cada vez mais densa, até que, vencido pela rarefação do oxigênio, você dorme e sonha que acabou de estourar uma bomba atômica.

Também há aquelas tardes de calor, em que a gente entra no ônibus de camiseta, senta-se e dorme. Enquanto sonha que está fazendo turismo no lixão municipal, o ar condicionado vai extraindo o calor ambiente, vai circulando a fedentina de sempre, e quando você acorda parece que está na Patagônia, gelado, o nariz coçando, preparando-se para a gripe do dia seguinte. Enquanto isso, duas ou três crianças, nauseadas com a fragrância de rosas do veículo, já estão enchendo os pacotes, ou o corredor — quando não dá tempo de vomitar nos pacotes, e aí está feito o clima para a viagem no ônibus superconfortável da sua companhia supermoderna.

Obviamente, você dorme só depois que o filme acaba. Porque nos ônibus supermodernos tem TV e filme de serial killer, para que todas as crianças viajantes possam entender desde cedo de que madeira são feitos os adultos. Isso quando não é filme de terror, para as crianças perderem bem cedo o medo das pegajosas criaturas do Além. Você pode estar cansado e aborrecido, querendo tirar uma soneca antes de chegar ao destino, mas a telinha está instalada bem à sua frente, espalhando cultura americana, mostrando o quanto o herói do FBI é competente cortando o fio azul sempre no último instante para impedir que a bomba estoure no coração de Nova York. O mocinho beija a mocinha, toca a música romântica e você tenta respirar aliviado, mas não dá. Só se botar o nariz por dentro da camiseta.

Perceba, amigo empresário, como tudo ficou mais emocionante com toda essa tecnologia. E ainda tem gente com saudades daqueles ônibus antigos, nos quais se podia curtir uma viagem silenciosa, abrir a janela quando o vizinho ao lado estava com flatulência depois de comer maionese na casa da sogra. Ou abria-se a janela apenas para sentir o vento no rosto quando era verão. Agora, com as janelas fechadas, ou melhor, sem janela alguma, você não é mais obrigado a dar adeuzinho para a família da esposa, senão através do vidro. E aquela história de entregar um pacote de biscoito de última hora, ou uma fotografia, uma lembrancinha, isso é coisa do passado.

Depois de voltar para casa faça uma pesquisa. Pergunte ao povo se prefere ônibus “convencional” ou com ar condicionado. Não se preocupe, isso só vai dar consistência e justificar os últimos investimentos da sua mega-empresa, pois há uma certeza muito bem enraizada no inconsciente coletivo de que tudo que é moderno é bom. Poucos hesitariam em afirmar que preferem o veículo com ar condicionado. Da mesma forma como, até há pouco tempo, ninguém hesitaria em dizer que preferiria o elegante carpete em vez do convencional e antiquado piso de taco. Até descobrirmos que o carpete é um fantástico criadouro de bichinhos nocivos à saúde humana.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

CAPUCCINO

A moça mostrava uma eficiência tão grande, tanto charme enquanto preparava o capuccino, que a gente quase se apaixonava por ela. Misturava no liquidificador o leite em pó e o café solúvel. Despejava a mistura num recipiente com tampa e acrescentava vários outros ingredientes misteriosos, como o bicarbonato e a canela. Mexia aqui, tirando o café expresso dali, derramando a nata fria e o pó de chocolate sobre toda aquela delícia expresso dali, derramando a nata fria e o pe se apaixonava por elaaralela, que jmo tamb. Nos próximos três ou cinco minutos, sorvendo aquele aroma e sabor únicos, parecíamos estar em Paris, no pós-guerra, sentindo toda a força humana convergindo para a reconstrução do Velho Mundo.

Dez ou quinze anos depois mudou a moça, e também a receita. Ninguém mais tem tempo de preparar um capuccino artesanal, por isso ele já vem pronto na latinha. A moça não tem preparo, joga muito pó e fica aquela meleca por baixo de um chantily de péssima qualidade.

Em toda parte estão-se perdendo os profissionais, os artesãos, em troca de produtos elaborados na indústria. Quase ninguém sabe fazer mais nada, senão vender o produto pronto. É mais ou menos isso que vemos também na música.

Eles não são medíocres. Se fossem, estariam na média, mas eles estão muito abaixo da média, embora eles sejam a mídia, os meios através dos quais passam todos os sucessos do Brasil. Eles são o nosso maior fracasso.

Há mais de 20 anos agüentamos a Xuxa, o Faustão e o Gugu, esses criadores da cultura enlatada brasileira. Eles não têm idéia do mal que fazem à nação, e talvez os diretores das emissoras onde eles pregam seus evangelhos de consumo também não saibam.

Há um Brasil explodindo de criatividade aqui fora da telinha, compositores fantásticos, artistas extraordinários criando uma cultura — não alternativa, pois isso parece coisa de bandido — mas uma cultura paralela, que já começa a vazar pelas tampas e está invadindo a internet. Em breve a turma da indústria cultural não conseguirá segurar o rojão e veremos a cultura do Brasil invadir a televisão, como nos velhos e bons tempos.

Quem sabe também volte a moça do capuccino com sua receita misteriosa.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

O TEMPO EXISTE, NA TUA CABEÇA

Tudo que conhecemos é relação. Através da observação dos relacionamentos que os objetos mantêm entre si, podemos visualizar o tempo, esse elemento físico vaporoso, intocável e transparente. Estudando o espaço, e a maneira como nele os objetos se movimentam, afastando-se, aproximando-se e interagindo uns com os outros, até somos capazes de manipular as horas, como se elas fossem, de fato, algo concreto e palpável. Mas não são as horas que manipulamos, e sim, os objetos que a elas relacionamos.

Quando Einstein disse que “o tempo não existe”, na verdade quis dizer que “o homem criou o tempo”.

Para entender melhor, imagine que você está a cinco quadras de casa. Vai demorar dez minutos até chegar em frente ao portão. A sua noção de tempo vai ficar ainda mais nítida se você contar os passos. Mas a sensação da passagem do tempo nada mais é do que a passagem dos espaços. A cada passo, a paisagem à sua frente se modifica. Se você se concentrar em outra coisa, uma lembrança ou um plano futuro, a paisagem desaparecerá. Será percebida pela sua retina e enviada até o cérebro, mas o cérebro estará ocupado com outra coisa. Estará pensando, por exemplo, onde estava a existência quando você não existia! Estará talvez pensando que Deus não desce mais até nós porque sabe muito bem o que fazemos com as criaturas aladas. E quando você vê, está diante do portão da sua casa, surpreso por ter chegado tão rápido! E você pensa: “Nossa, o tempo passou tão rápido!”. Mas o tempo não passou. O que aconteceu foi que você anulou o a sua sensação de tempo. O espaço daquelas cinco quadras foi substituído por uma fantasia, um pensamento, uma alegoria, e o tempo desapareceu.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

OVOS GORADOS

Tudo que tenho para dizer, Nietzsche já o disse, de forma mais bela e profunda do que eu jamais diria.

Mas temos um século que nos separa, então, o que são as obras, as descobertas, as hecatombes ocorridas nesse intermédio? O século XX foi um período de variações mínimas, ao contrário do que dizem certos entusiastas da velocidade. As estruturas foram pintadas, cantadas, retorcidas, mas nenhum de seus alicerces foi arrancado. Os homens que Nietzsche botou em seu espremedor de laranjas são essencialmente os mesmos de hoje, com os mesmos temores, os mesmos deuses irrevogáveis, os mesmos valores inegociáveis.

Permanece o homem plantado ao rodapé de sua própria história: ainda somos os não acontecidos, os ovos gorados. Tudo que fazemos é reerguer os velhos totens, dando-lhes novo volume e moderna textura, mas a essência que a Natureza buscou produzir em nós permanece em estado de suspensão. O cérebro humano congelou em algum momento perdido da Idade Média. Teve alguns surtos, algumas febres, mas nada que o curasse da desconfiança de que está aqui para ser enganado.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

O CAOS E A FRITADA DE LAMBARIS


Após pescar, descamar e destripar trinta a cinco lambaris, foi preciso prepará-los para a fritura. Antes de espargir o manjericão, que dá sabor, e o fubá, que dá consistência ao quitute, foi preciso jogar o sal. E nesse momento, enquanto meus dedos rodopiavam os corpos lisos dos peixes mortos na tigela, senti a presença sutil e dramática do caos.

Para salgar trinta a cinco lambaris foi necessário que a mão produzisse uma série de movimentos aleatórios, a fim de que todas as inúmeras minúsculas partes do pescado fossem homogeneamente atingidas pelo tempero. Quanto mais turbulentos esses movimentos caóticos, e quanto maior sua duração, mais eficiente a distribuição dos grãos nas superfícies.

Somente produzindo o caos, extraindo o sal de sua sossegada organização dentro do pacote, que se encontrava na prateleira ao lado do açúcar e do chocolate, foi possível produzir uma nova ordem, denominada “lambaris salgados prontos para a fritura”.

Logo em seguida chegaram Galileu Galilei e Isaac Newton, que me ajudaram a destruir essa nova ordem cosmológica.

domingo, 25 de outubro de 2009

PREENCHIMENTOS

Que espaços ficariam vazios, se eu não tivesse nascido? O que preenchi com minha existência, além de umas poucas fendas? Que espaços permaneceram incompletos nos dias em que preferi ficar em casa? Que corpos ficaram frios quando me guardei em meus próprios braços? Que bocas restaram sedentas quando não ofereci meus beijos? Que olhos permaneceram fechados quando não pensei que poderia abri-los? Quantas lágrimas caíram antes que eu soubesse que poderia estancá-las? Quantas flores se abriram na claridade de um campo ignoto enquanto me ocupava em olhar minhas escuridões?Que pedaços de terra permaneceram desertos aguardando as sementes que guardei em meus bolsos? Que noites foram mais profundas e duradouras, senão aquelas em que aprisionei a luz em meus próprios olhos? Quantas estrelas morrem nas noites em que não saio à janela para cortejá-las?Que versos permanecerão mudos para sempre porque fui dormir no momento de libertá-los?

sábado, 24 de outubro de 2009

A BUSCA

Nenhum homem tem a obrigação de alcançar glórias, de construir obras faraônicas ou de dizer coisas grandiosas. A fama e a glória podem afetar alguns espíritos imaturos, mas não proporcionarão a um homem sábio mais que um breve estado de delírio. Entretanto, mesmo que sua existência não se propague para além de um silencioso anonimato, todo homem deve esgotar as possibilidades na busca de si mesmo, ainda que para isso tenha de expor a brancura de seus ossos.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

JAQUETA JEANS

Veja novo velho texto de Chico Guil em:

O MOVIMENTO

Quando Jade tinha um ano e três meses, joguei um disco de vinil no chão e ela foi atrás. O disco percorreu a sala, bateu na parede, rodopiou e finalmente acomodou-se no assoalho. Jade olhou, acocorou-se, fez um muxoxo e saiu em busca de outro brinquedo. O que Jade queria era pegar o movimento!

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

EMPINANDO BUNDAS

O automóvel tornou-se o verdadeiro soberano da Nova Era. Feito uma ameba saudável, ele evoluiu rápido, transformando-se ao longo das décadas, virando paramécio, rato, besouro. Nos últimos anos teve um surto, uma febre, transformou-se em lagarta, e agora está pronto para completar a metamorfose e converter-se numa verdadeira borboleta. Sairá voando e abandonará as rodovias, graças a Deus.

Para compreender a força desse besouro ruidoso, vejamos como todas as cidades são desenhadas para que ele transite livremente, enquanto nos mantemos trancados e apertados em pequenos cubículos e estreitas vielas. A urbe é repartida em quadras, de modo a conformar o espaço disponível segundo as necessidades do bichinho metálico. Se ousamos cortar sua trajetória, plupt, atropela com força, jogando-nos de volta às estreitas calçadas, únicos espaços por onde podemos transitar. E mesmo ali, confinados, respiramos os malcheirosos gases da intermitente flatulência deste serzinho malcriado.

A indústria não fabrica automóveis com o intuito de contribuir para o acréscimo de beleza no mundo. Mas com certeza os designers de automóveis fazem uma análise profunda das carências humanas antes de iniciar suas obras. O que mais preocupa o homem? eles se perguntam. O desamor? Não. A decadência financeira? Nem tanto. O descalabro dos glúteos? Sim! É por isso que os automóveis da última geração têm a bunda empinada... para compensar a bunda caída dos compradores.

O PÉ

Não foi somente o acaso, mas uma convergência de vontades o que fez gerar esse tipo especial de pés, estes meus pés largos, compridos e chatos, que mais parecem patas de marreco.

Quando eu tinha seis ou sete anos vim com meu pai até a cidade de Prudentópolis. Passamos na frente da casa do Nono Pedro, e meu pai, vendo que o sogro estava na frente carpindo mato, resolveu chegar. Puxaram assunto e a enxada ficou encostada no banco sob a velha castanheira. Curioso, apanhei o instrumento e comecei a carpir. Meu pai, vendo o perigo, gritou:

— Vai cortar o pé, piá!

E eu, confiante em minha destreza, continuei carpindo, mas não foram mais que três golpes antes de ficar a enxada no dorso do meu pé direito. Foi um jorro de sangue, uma correria, meu pai me carregando para a cabine do caminhão Ford novinho — ah, sim, foi isso, ele deve ter parado ali para mostrar o caminhão novinho para o sogro — até que a enfermeira limpou tudo, me enfiou a agulha, aplicou uma anestesia e concluiu a costura. Foram quatro pontos, como o agente funerário poderá verificar na cicatriz, quando estiver preparando meu corpo para a cova.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

NENÚFAR

Hoje saímos passear, eu, Julian e Audrey. Fomos lá para os lados da Linha Esperança, seguindo em direção ao Gramadinho. Descobrimos as plantas mais inusitadas e colhemos algumas mudas para plantar em nossa chácara. Numa baixada, à esquerda, ao lado de uma casa de ucranianos, vimos os nenúfares.

As flores boiavam sobre folhas largas, parecidas com vitórias régias. As pétalas roxas, degradando em violetas e lilases, recobriam um surpreendente fundo amarelo, produzindo um efeito parecido consegue através de computadores. Flores, enfim, que eu nunca havia visto, apesar de todas as andanças que já fiz por este município. Então fique pensando como elas foram parar ali, e se ali estão pelos séculos e séculos, e como foram, enfim, se transformando naquelas coisas tão singulares e maravilhosas à superfície de um pântano!

Julian, como sempre nesses passeios, bastou andarmos uns dois quilômetros a partir de casa, dormiu, e perdeu todos os cavalos, vacas, cabritos e pássaros à beira da estrada.. Somente quando chegamos a um ponto onde achamos melhor retornar, ele acordou, e logo viu uma manada de vacas marrons, alguns bezerros e um boi. Audrey disse: “Veja as vacas, Julian, estão pastando”. Ao que ele respondeu: “Tão comendo pastel, mãe!”.

sábado, 17 de outubro de 2009

FUNERAL

Ainda que meus olhos brilhem nestas tardes de céu azul e os perigos antigos tenham desaparecido da minha cabeça, é fato concreto que um dia esta mão escreverá sua última linha. Que espécie de anseios revelará? Que tom de poesia, que freqüência de tremores, que frase estará querendo perpetuar para o dia do meu funeral?

UM TEXTO A MACHADO

Veja novo texto de Chico Guil em:
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=12750

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

O NOBEL DA GUERRA

Henry Kissinger participou da cúpula do governo norte-americano durante um longo período, que abrangeu inclusive a guerra do Vietnam. Foi considerado criminoso de guerra, por sua participação em golpes de Estado no Chile, no Uruguai e no Timor. Em 1973 recebeu o prêmio Nobel da Paz por sua luta em favor do fim da guerra do Vietnam.

Estrategista político dos mais cultuados nos Estados Unidos e em redor do mundo, Kissinger representa o que há de mais sofisticado numa alma negra, para quem o sangue de inocentes não passa de moeda barata. Quando percebeu que o Vietnam não concederia aos USA mais que um final inglório, aconselhou a retirada dos heróis. Os representantes da Academia ficaram sensibilizados e lhe deram o maio prêmio concedido a um cidadão por suas iniciativas humanitárias!

Desde que Obama assumiu o governo dos USA, muitos inocentes morreram ao redor do mundo pelas metralhadoras dos heróis. Ainda assim, a grande imprensa mundial acha conveniente propagar que “terroristas foram eliminados”, em vez de que “cidadãos foram assassinados”. Finge não saber que os lutadores sempre são heróis para a classe que representam, e com isso justifica todos os massacres, relegando a morte de civis à mera estatística, ou déficit de guerra.

Obama apóia tudo isso, e com isso foi laureado com o Nobel da Paz. Em conversa num dos mais populares programas de entrevistas norte-americanos, afirmou que os heróis continuarão no Afeganistão por tempo indeterminado, até a eliminação total do inimigo. Ou seja, na mesma semana em que recebe a notícia do Nobel, confirma sua disposição em continuar matando pessoas mundo afora. Não sabe quem são, não conhece suas famílias, nunca olhou nos olhos dessas pessoas. Mas sabe que são inimigos dos USA, por isso devem e vão morrer.

Os massacres imputados ao governo norte-americano durante o governo Bush são crimes do governo americano, antes de serem crimes do cidadão Jorge Bush Filho. Obama é, acima de qualquer coisa, representante de um governo criminoso, que deveria ser punido pela morte de milhares de inocentes, em vez de ser premiado pelos milhares de inocentes que talvez deixará de matar.

O mesmo motivo pelo qual a palavra herói tornou-se um palavrão, o prêmio Nobel da Paz pode hoje ser considerado uma coisa abjeta, vil, podre. Representa o que há de mais insano e hipócrita na sociedade humana.

CHICO GUIL EM CARTA MAIOR

Veja mais artigos de Chico Guil em

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

HÁ VAGAS NO CÉU

A falta de vagas no céu mostrou-se um problema grave desde o início dos tempos. O critério de avaliação dos candidatos é assunto controverso, muitas vezes sangrento, e precisa ser urgentemente revisto. Sugiro vestibular com questões de múltipla escolha, incluindo prova de matemática e redação.



segunda-feira, 12 de outubro de 2009

A LUZ E O FOGO

O fogo é fonte de luz.
Mas se uma luz mais forte incide sobre ele,
sua sombra aparece projetada na parede.
Donde se conclui que o fogo não é luz pura,
porém luz misturada com fumaça.

- - - -

As bodas do amor transportam os amantes
aos mais paradisíacos recantos do universo.
Quando os amantes começam a procurar o paraíso
nos mapas de viagem,
o amor já voou para bem longe.

domingo, 11 de outubro de 2009

A LUA VAI LEVAR BOMBA

Dia desses,
para ver seu lado oculto,
vamos jogar uma bomba
e desgoverná-la.
Lua.

Estes versos de Roberto Cantins foram escritos há aproximadamente 10 anos. Uma profecia que está prestes a se cumprir.
Depois que os norte-americanos explodirem a bomba naquela superfície silenciosa, que há milhões de anos não sofre o ataque de um asteróide, nossa amiga Lua vai nos virar a bunda, finalmente mostrará o lado oculto e abandonará nossa órbita para sempre.
Ficaremos sem as marés, os peixes não saberão mais procriar, nem saberão em que dia e hora poderão ser pescados. Os pés de ameixa não saberão a data certa para serem plantados, e as mulheres perderão seus ciclos de fertilidade. As novas sementes permanecerão em seus ovários, aguardando o retorno da Lua. Se ela não voltar, a humanidade e todos os seres dependentes da sua força e luz terão o mesmo fim.

Violência a céu aberto
A violência com que portugueses e espanhóis atacaram a América foi condenada séculos afora, mas os norte-americanos não aprenderam a lição. Acreditam que suas operações “objetivas” estão levando a humanidade a um estado de graça, mas esta é a visão de um míope. A humanidade caminha com outras pernas, evolui com outros artifícios, descobre-se com outras ferramentas.
As novas invenções — atenção, não são realmente descobertas, mas criações matemáticas! — da ciência médica e da química talvez possam explicar como funcionam o ribossomo, a divisão celular e a carta genética. Mas para que isso? Para prolongar nossas vidas miseráveis? De que adianta prolongar a vida, se não podemos curar o espírito aviltado, sanar a fome esganiçada, conter da marcha sem freios?
Audrey Farah disse que os Estados Unidos estressaram o mundo. E todos os dias, em cada ação cotidiana, percebemos que nos deixamos estressar. Meus amigos estão quase todos gordos e inchados, hipertensos. Querem, mas não conseguem mais parar para conversar. Acreditam na importância de se ler todas as mínimas mensagens que aparecem sempre que abrem uma janela do Windows, mas já não abrem as janelas de suas próprias casas para dar adeus aos conhecidos. Não abrem as janelas de seus olhos para contemplar e abençoar as paisagens magníficas que a Natureza continua nos proporcionando apesar das bombas.
Estamos ausentes de nossas vidas e das pessoas que amamos. Queremos chegar aos confins do universo, e vamos jogando bombas para abrir o caminho, enquanto nossas velhas e frustradas almas continuam recobertas com a velha e endurecida carapaça. Nossos corpos, vestimentas de nossas almas, a cada dia mais cobertos com novas maquiagens e novos conceitos para esconder o mais fundo possível os nossos gritos de animais acuados.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

CRÔNICAS ESCATOLÓGICAS


“Nem parece banco”. Esse slogan esteve em todos os principais canais de TV alguns meses atrás. Com muito orgulho e galhardia, uma das maiores instituições bancárias do Brasil dizia ser tão boa para seus clientes que nem parecia um banco.

Seria algo como o padeiro da esquina dizer “olha, eu vendo um pão tão saboroso que nem parece pão”, ou o vendedor de esterco afirmar que seu produto nem parece esterco.

Está aqui o reconhecimento de que a instituição bancária é uma coisa tão abjeta, tão deplorável, tão maligna, tão podre e lastimável, que nega sua própria natureza quando necessita divulgar-se para manter-se viva. Uma viçosa porcaria que cresce cada vez mais no centro da cidade, um grande monte de esterco (o que mais se pode pensar de um prato de comida que nem parece comida?!).

Disseram-me que o município paulista de Barueri é um dos quatro que mais arrecadam impostos bancários no país. Tem lógica? Imagine a seguinte situação: um grupo de instituições bancárias faz um acerto com determinado município para que este reduza drasticamente o imposto sobre serviço bancário. Em troca, todas essas máfias registram suas sedes nesse município, pagando aproximadamente 1.000% a menos do que normalmente pagariam. E os municípios sedes das agências bancárias ficam sem o seu quinhão de impostos. Alguns deles já estão reivindicando milhões em ressarcimento.

Al Capone foi preso por sonegar impostos. Por que os nossos juízes não põem na cadeia esses mega-sonegadores brasileiros?

A estrela da fotonovela anuncia um iogurte com fibras e garante que em 15 dias todo e qualquer resíduo acumulado entre as dobras intestinais será dado à luz, e o fluxo natural será regularizado. Ela não diz se será necessário continuar ingerindo tal produto para manter o intestino obediente, mas garante que funciona, e se não funcionar a fábrica devolve o dinheiro investido.

Diga-me, leitor, como um indivíduo poderá provar que o artifício não funcionou? Ele terá de filmar a ingestão de todos os iogurtes. E depois, como comprovará que não deu certo? E o fabricante, como poderá averiguar se funcionou, ou certificar-se de que não funcionou? Poderá, quem sabe, designar uma equipe para acompanhar o consumidor em suas idas e vindas ao banheiro. Mas e se na hora ele simplesmente resolver segurar o cocô?

Pode parecer de mal gosto, leitor(a), mas você há de convir que as questões acima estão no cerne da nossa civilização. Precisam ser discutidas e resolvidas, se quisermos continuar andando. A mentira faz parte da instituição da propaganda, enojo-me e concordo, mas há uma grande diferença entre dizer que tal shampoo impede a queda de cabelo e afirmar que este banco é algo melhor que banco, ou que aquele remédio ou iogurte é capaz de dissolver as conseqüências naturais do estresse e da tristeza.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

VERSÍCULOS

Todos os recantos da minha alma

estão repletos de emoções.

Se você me beijar,

vai começar a jorrar.

- - -

As agulhas do Criador

estão tecendo os fios da vida.

De vez em quando

os dedos escorregam

e nos dão umas agulhadas.

- - -

Perguntei ao Gênio

qual era o maior dom da vida

e ele disse a liberdade.

Então perguntei onde era

a terra dos homens livres

e ele me apontou o cemitério.

- - -

Enquanto descanso,

fugindo de um mundo tempestuoso,

um pensamento seu

lá não sei quando

vem ranger a minha porta.

Meus dias vinham molhados de chuva,

brancos, congelados,

devastados de tempestades,

acolchoados em nuvens e neblina.

Os meus dias eram nublados.

Os meus melhores dias

são os que passam

e já nascem dourados de sol.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

DICIONÁRIO DO JULIAN

Audrey arregaçou as mangas da camisa de Julian para lavar as mãos do piá. Quando ela terminou o serviço, Julian disse, querendo fazer voltar as pontas das mangas à posição original: “Vamo remangá”.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

OS ROMEIROS DA LAPA

Minha mãe foi visitar nossos primos na cidade da Lapa. Os filhos do tio Berto mudaram para a cidade histórica há aproximadamente 20 anos, depois que seu irmão Romildo entrou no exército e fez sucesso como corneteiro. Foram todos trabalhar na Da Granja, alguns como degoladores de frangos, outros como serventes e guardiões.

Quando mamãe chegou, fez alvoroço. Todos os sobrinhos estavam ansiosos pela visita, prometida havia mais de vinte anos.

Agadir, o primeiro visitado, era muito diferente do menino encrenqueiro que deixou Prudentopolis nos anos 70. Tornou-se um senhor respeitável, calejado pelo sofrimento. Ao sair da casa do Gade, minha mãe foi acompanhada pela família deste — o casal mais duas filhas muito bonitas e três colegas de escola — até a casa do Dinei. Mais conhecido como Bolinho na época em que morava em Prudentópolis, Dinei apaixonou-se pela Zula e casou cedo, contando hoje com três filhos adultos e vários netos, todos presentes para receber a irmã do Berto.

Saindo da casa do Dinei, minha mãe arrastou junto as duas famílias, e foram pelas ruas da Lapa visitar a Estelinha. “Até parece que ela remoçou depois que lhe morreu o Antonio”, segredou minha mãe ao Bolinho, que concordou com um gesto da cabeça.

Saindo da casa da Estelinha, seguida pelas três famílias pelas ruas da histórica Lapa, mamãe foi à casa da Araci, onde teve o prazer de conhecer todos os filhos da sobrinha mais velha, que saíram junto com ela e com os outros até a casa do Jurandir e sua numerosa família, e bastaram vinte minutos de animada conversa, lembranças e saudades de memoráveis momentos da época em que o Berto ainda era vivo, para que todos seguissem em romaria pelas ruas da Lapa, até a casa do Romildo, que infelizmente estava pescando no rio Iguaçu, mas nem por isso sua mulher e filhos deixaram de acompanhar os outros.

Saindo da casa do Roma, Dinei fez questão de apresentar minha mãe à família de seu amigo Divonzir, proprietário das Organizações Divo, que naquele momento estava sendo visitado pela família do Sidenei, e bastou alguns minutos para que todos os presentes aderissem à procissão puxada pela minha mãe pelas ruas da Lapa.

Tomados de curiosidade e impulsionados por não sei que instinto exploratório que desperta em todo aquele que se aventura longe de casa, os turistas que passeavam na cidade começaram a se juntar aos “romeiros”, e foram em animada conversa pelas vielas da Lapa. Em breve a multidão passou a ser seguida por inúmeros veículos, cujas placas e adereços denunciavam a origem distante, de outros estados e até de outros países.

As visitas aos sobrinhos estendeu-se pela tarde, e já se tornara impossível romper a grande massa de marchadores e carros que atravancavam as ruas, o que foi notado por uma patrulha de policiais militares. Sem saber do que se tratava, mas conscientes de que podia ser uma marcha de greve ou o início de uma revolução, os soldados solicitaram a presença de outras viaturas, e acompanharam atentos e solenemente minha mãe e todos os outros até a casa do Agadir, onde ela havia deixado sua velha Belina.

Logo que mamãe entrou no veículo e deu a partida, iniciou-se um alvoroço. Os seguidores correram em busca de seus automóveis, temerosos de perder o desfecho daquele inusitado passeio, que deveria findar no mais extraordinário dos pontos turísticos.

Saindo da Lapa, no entanto, minha mãe tomou o rumo de Curitiba, seguida por imenso comboio, que passou pela capital paranaense causando muito susto e tumulto e desaparecendo em seguida na BR 277.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

SULFATANDO BATATA

A legislação sobre o trabalho infantil segue
o mesmo padrão da que determina
a utilização da terra nos sertões do Brasil:
pessoas que jamais plantaram um pé de
milho, ou que jamais ergueram uma palha
do chão, definem o que é certo e errado
na vida de nossos filhos. Com muito
gosto, continuaremos desobedecendo.

Hoje vi a alma do meu pai, na paisagem colorida de primavera, a mata com pinheiros e palmeiras altas sobre um azul profundo. Se dissesse a ele, não sei se lembraria que um dia se viu nessas paisagens, naquelas tardes em que nos deslocávamos até as plantações de batata com tambores de água de 200 litros, motor de dois HPs sobre a picape Ford 1969, uma comprida mangueira e alguns pacotes demanzate, o agrotóxico antifungo da época. Algumas semanas após o plantio, já era um tapete verde da batata radosa, da delta ou da binje, salpicado de flores brancas e algumas roxas, de outras espécies que vieram junto nas caixas de sementes selecionadas compradas em Irati.
Estacionava a caminhonete debaixo de uma corticeira, descia da cabine, punha as mãos na cintura e, sorvendo o vento fresco da tarde, olhando na distância a paisagem de pinheiros e palmeiras altas, suspirava. No horizonte, além daquelas árvores perfeitas, estava o futuro, mas era preciso trabalhar duro para alcançá-lo, então ele abria dois pacotes do veneno, distribuía um em cada tambor e mexia com as próprias mãos, sem máscara, sem luvas, e com isso nunca pegou sequer uma gripe ou dor de barriga. Talvez estava protegido pela felicidade!
Descíamos a mangueira e estendíamos na direção das leiras. Na extremidade havia um cilindro de metal fino e comprido. Pegado à mangueira havia um cabo de madeira. Na outra ponta do cilindro, uma peça metálica formada por três auréolas, em cada uma destas um furo por onde passava o líquido em forma de vapor. Depois de estendida a mangueira, o pai apanhava uma pequena corda com um nó na ponta — a camisa arregaçada deixando à mostra os braços magros, musculosos e peludos — enrolava a corda a uma peça saliente do motor e dava um puxão para acioná-lo.
O barulho ecoava pelo vale, enquanto o lavrador corria apanhar seu instrumento de trabalho. Mal chegava àquele ponto, uma fumaça branca envolvia-o, enquanto ele caminhava apressado, fazendo movimentos em forma de oito em torno de si, procurando abranger todos os ramos das plantas. Enquanto ele passava de uma leira a outra, eu ia jogando a mangueira para lá e para cá, evitando que ela derrubasse os frágeis pés de batata.
Um mês depois, quando as folhas começavam a amarelar, lá íamos mexer a terra, ver o tamanho das bolotas que a Natureza nos proporcionara. Elas saíam contrastando com a terra marrom, aquelas formas amarelas, graúdas e arredondadas que enchiam de orgulho os olhos do plantador. Se o tempo fosse generoso, se o solo fosse bem adubado, havia ninhadas com mais de um quilo. Mais uma semana ou duas, os talos murchavam, as folhas secavam, e lá estávamos, meu pai no cabo do arado arrebentando as leiras e fazendo aflorar os tubérculos de ouro, enquanto eu e os camaradas seguíamos atrás com os balaios, juntando tudo e embalando nos sacos de estopa cor de palha, sempre com cheiro novo de polietileno.
Quando a safra era grande e o produto era abundante, só se vendia batata lavada. Meu pai enchia um tambor de água, acionava o pulverizador e me entregava a mangueira. Então apanhava as pelotas num balaio e ficava chacoalhando, enquanto eu, de pé numa cadeira, soltava o esguicho. Enchíamos dezenas de sacas com esse sistema.
Dias atrás vi na capa de um jornal de Guaçatunga/PR a fotografia de dois garotos sorridentes colhendo batatas. Senti saudades, e até uma ponta de inveja dos garotos. Mas o título da matéria era sinistro: “Trabalho infantil é explorado nas plantações de batata”. Fiquei pensando se não estamos sendo demasiado radicais, acreditando que qualquer atividade das crianças em benefício do patrimônio familiar é “exploração do trabalho infantil”.
Quando criança, eu adorava ajudar meu pai, mesmo quando fosse trabalho duro. Olhando no jornal de Guaçatunga aquela fotografia dos garotos sacrificados pelo trabalho infantil, nota-se que estão se divertindo e criando fibra, enquanto os “piás de prédio” passam o dia feito zumbis em frente à internet e vão ficando moles, bem ensinados de que todo trabalho é exploração. E quando os pais lhes pedem o favor de lavar pelo menos os tênis encardidos, retrucam: “Não sou teu escravo”!
A exploração do trabalho infantil deve ser condenada e punida, não há dúvida. O problema é que a legislação botou os pais e amigos das crianças no mesmo nível dos bandidos. Da mesma forma como já havia posto os destruidores de florestas no mesmo patamar dos trabalhadores que derrubam cem metros quadrados de mata para construir uma residência. Maltratar as crianças com trabalho é muito diferente de apresentar as nuances da vida através do trabalho, senhores deputados.

domingo, 2 de agosto de 2009

OS DENTES DE JULIANO

Era um boneco sensacional, vestido com o tradicional jaquetão vermelho, com cinta e botas pretas, luvas e sorriso brancos feito neve. Papai Noel cantava com voz de rádio mal sintonizado e rebolava meio desengonçado, naqueles primeiros tempos dos bagulhos importados do Paraguai. Mas para o pequeno Juliano era a coisa mais linda do mundo. Os dedinhos das mãos formigavam, ansiosos por tirar o velhinho da prateleira.

— Quanto custa, Roberval? — perguntou a um sujeito de cabelos ruivos, que naquele momento desmontava uma calculadora eletrônica com uma chave de fenda.

— Quatro cruzeiros. Você tem? — Dedo na boca, coceira na nuca, Juliano gostaria de dizer que sim. — Me traga os quatro cruzeiros e o Papai Noel é teu. Tome. Aperte o botão pra ele cantar.

O garoto não perdeu a oportunidade. Agarrou o boneco com sofreguidão, apertou o botão cravado nas costas e encostou a barriga do bom velhinho no ouvido para senti-lo resmungar uma velha canção de Natal americana.

Naquela noite sonhou com os sinos de Belém. A carruagem natalina espalhava estrelinhas no céu azulado, o velho de barbas longas distribuía presentes na cidade glacial, num país muito distante e pequeno.

Quando acordou, sentiu um estorvo na boca. Cuspiu longe, porém, vendo que brilhava, levantou da cama e foi ver o que era.

— Mãe, mãe! Caiu um dente — gritava, entrando disparado na cozinha. Mas a mãe não se encontrava. Só a Vovó Jurema. — Vovó, Vovó, veja, caiu um dente meu.

— Você já é um homenzinho — disse a avó, tomando o dente e analisando-o com seriedade e devolvendo-o ao menino. Estava sentada no caixão de lenha, ao lado do fogão, tecendo tricô. Tinha a estatura de uma menina, cabelos curtos e brancos mal enrolados num lenço de bolinhas. Estava recurvada sobre as agulhas compridas, que se trançavam com rapidez e precisão, enrolando fios brancos e vermelhos sob o olhar atento do menino.

— Vou propor um negócio pra você — continuou a velhinha, parando novamente com o tricote. — Você me dá o dentinho e eu te dou um cruzeiro. O que acha?

Com o assentimento de Juliano, sacou uma bolsinha velha de sua sacola de compras, retirou uma moeda e entregou ao neto. O menino saiu em disparada até “escritório” do Roberval, que naquela época morava numa pequena pensão do Limoeiro. O quarto estava sempre atulhado de bugigangas, que variavam entre vídeo-cassetes coreanos até bonequinhos de madeira da China. Além dos produtos importados, o quarto estava sempre cheio de garotos que, à moda de Juliano, tinham ali um ponto de encontro e de partida para as aventuras diárias.

— Eu trouxe um pouco do dinheiro — disse Juliano, logo que avistou o comerciante. — Posso levar o Papai Noel?

— Quanto você tem? Um cruzeiro? Mmm! Se prometer que me traz o resto até o final do mês, pode levar.

Juliano quase explodiu. Era dele! O Papai Noel! O fato de que tinha dinheiro na mão dispensava qualquer discussão sobre o valor da moeda. Embora quase estourasse de felicidade ao abraçar seu boneco, não estava nem um pouco surpreso com a generosidade do vendedor. Somente à noite, depois do severo alerta da mãe quanto ao perigo de “receber presentes de certas pessoas”, o garoto começou a matutar sobre os três cruzeiros restantes que teria de viabilizar nas próximas semanas. Chegou a pensar em vasculhar os bolsos dos pais, mas uma lição recebida pelo irmão mais velho há poucas semanas desmotivava qualquer ação desse naipe. Podia pedir emprestado a um amigo, mas quem, com sua idade, teria aquela montanha de dinheiro? Estava definitivamente em maus lençóis. Ainda assim, abraçado ao seu novo parceiro de cama, gastou quase toda a pilha e os nervos da família fazendo o boneco guinchar e bambolear madrugada adentro.

Na manhã seguinte, embora a mãe estivesse sentada à mesa, procurou o colo da avó, que naquele momento dava os últimos retoques a um luxuoso cachecol de lã.

— Caiu mais algum dentinho, querido?

— Não.

— Que boneco mais lindo. — A avó olhava ao mesmo tempo o menino e a mãe, que lhe dizia na linguagem labial: “Ganhou de presente de um tal de Roberval”. — Ganhou de presente? Nossa, eu seria a criança mais feliz do mundo se no meu tempo eu tivesse uma coisa dessas.

Juliano sorria, mostrando orgulhosamente o buraco deixado pelo incisivo desaparecido.

— Quer continuar o nosso negócio?

— Ahn?

— Cada dentinho que você me trouxer, te dou um cruzeiro. Você topa?

— Nossa, Vovó. Ta falando sério?

À noite um Juliano preocupado e endividado tinha uma ventania dentro da cabeça. Moedas, brinquedos, o rosto mal barbeado e misterioso do Roberval, tudo se misturava por dentro das pálpebras. Perturbado, pulou da cama e foi ao espelho do banheiro ver o buraco na dentadura. Fez algumas caretas, simulando algum monstro de história em quadrinhos. Assoprou pela fresta, cuspiu, tentou assobiar. Botou o mindinho entre os dentes restantes, para ver se passava pelo meio, mas o buraco não era tão grande quanto parecia. Notou que um dos dentes estava frouxo. Apertou mais um pouco e percebeu que ele cedia cada vez mais.

— Vovó — disse Juliano, no momento em que a velha colocava a chaleira no fogo para o café. Era sempre ela quem levantava mais cedo e preparava para todos o desjejum. Estranhou que o pequeno aparecesse àquela hora, mas recebeu-o como sempre num abraço caloroso.

— As pulgas te expulsaram da cama? — perguntou a velha.

Juliano riu, forçando para manter a boca fechada.

— Lembra, fofó, daquele negócio que você prometeu?

— Sei. Dos dentes. O que é que tem?

— Tão aqui fofó — exclamou o garoto, sorrindo com uma notável fresta onde deveriam estar os incisivos, enquanto abria a mão com as três pedrinhas brancas, ainda manchadas de sangue. — Agora focê me dá o dinheiro?

quinta-feira, 30 de julho de 2009

AS ESTRUTURAS DA SUA HISTÓRIA


Quando entramos num edifício novo, raramente pensamos que ele tem uma história. Dá a impressão de que aquela estrutura gigantesca levantou-se sozinha, de súbito, pronta para ser ocupada. Mas aquele bloco de tijolos, areia e cimento ergueu-se aos poucos, ao longo de muitos meses. Ali conviveram os construtores, que contaram a si mesmos as mais incríveis lorotas, tropeçaram, bateram-se, machucaram-se, proporcionaram-se a gentileza de alcançar um copo d’água, um sanduíche, passaram dias sufocantes sob o sol e o frio. Desde a escolha do terreno, passando pela elaboração da planta, a implantação dos alicerces, a elevação das paredes e os acabamentos, os engenheiros e pedreiros fizeram a história desse edifício, num rumoroso volume de vozes, movendo máquinas, ferramentas, deslocando para lá e para cá os materiais de construção. Mas agora o edifício está quieto, parece que emergiu pronto das profundezas da terra.

Se quiser contar a história dessa construção, você pode buscar os documentos da compra do terreno, analisar a planta e todos os papéis fornecidos pelas instâncias legais. Também poderá entrevistar aqueles que trabalharam diretamente na edificação. Se o prédio for antigo, no entanto, você terá de ouvir os descendentes dos construtores. E a história nunca será completa. Depois de passados alguns anos, poucos saberão dizer como foi, exatamente, que esse grande monolito elevou-se do chão para tornar-se abrigo de famílias, lojas ou escritórios.

Na construção de uma cidade, o processo é basicamente o mesmo. Inúmeras pessoas se unem para formar uma longa e complexa teia de relacionamentos, através da qual é gerada a história. Mas quando você vê a sua cidade crescida, provida das mais diversas instituições e empresas, tem a impressão de que ela nasceu assim, pronta, com suas casas, ruas e edifícios. Poucos tentam reencontrar as vozes antigas, que determinaram a construção desta escola, daquela igreja, daquele supermercado. Mesmo assim, as decisões passadas encontram-se impregnadas na estrutura da cidade, como o suor dos pedreiros permanecerá para sempre misturado ao cimento dos edifícios que ele construiu com o seu sacrifício.

Um município sem história é como uma ilha flutuante, que navega ao sabor das correntes sem poder determinar seu próprio rumo. Quando escrevemos essa história, estamos tentando reencontrar os alicerces, aquela força ancestral que, décadas atrás, arregaçou as mangas e se pôs a compor as bases desta cidade. Estamos devolvendo a voz àqueles que batalharam para que pudéssemos desfrutar o conforto que temos hoje.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

PARA SIMONE DE BEAUVOIR


Stanislaw bebeu da fonte da vida eterna. Quando lhe caiu uma geladeira na cabeça, ele levantou e saiu andando. Depois estourou a guerra atômica e Stan ficou no meio dos destroços, respirando aquele ar horrível durante mais de três séculos. Passava muita fome e frio. Depois o sol se apagou, a Terra virou uma bola de gelo e Stan continua lá, paralisado na escuridão, pensando, pensando...